Grupo evangélico tenta resgatar viciados das cracolândias de Natal
Projeto Saqueando o Inferno é coordenado por um policial e por um ex-PM.
Viciados que aceitam ajuda têm internação, moradia e alimentação. gratuitas.
"Vender meu corpo, roubar, quase matar".
Laura Dantas Rodrigues de Oliveira, de 21 anos, enumera assim tudo o que aconteceu em sua vida por causa do crack. Como milhares de pessoas que caem na armadilha dessa droga, ela teve a vida destruída. Natural de São Pedro da Aldeia (RJ) e desde a adolescência vivendo em Natal, a jovem encontrou esperanças de deixar o vício no projeto Saqueando o Inferno, que mantém lares para ajudar dependentes químicos. Laura está em uma dessas casas há quatro meses.
Laura está afastada do marido, do filho e dos pais. "Eu tinha tudo: paz, casa, família. Meus pais se afastaram de mim, chegaram a nem querer ouvir minha voz", diz.
Eu tinha tudo: paz, casa, família. O crack destruiu minha vida."
Laura Oliveira, 21 anos, interna
Por causa do vício, ela teve que passar a guarda do filho para os pais dela, que moram no Rio de Janeiro. “O crack destruiu minha vida. Mas agora vou me livrar desse vício e recuperar tudo o que perdi”, afirma.
Laura vive em uma granja em Parnamirim, na Grande Natal. Ela divide as tarefas da casa com outras mulheres que também estavam nas ruas.
Lá, elas têm abrigo, refeições e conforto espiritual. Não pagam nada por isso. O custeio fica por conta de um grupo de evangélicos que há 8 meses decidiu criar o projeto. Além do lar das mulheres, o grupo ainda mantém outros locais que ajudam homens: uma fabriqueta de tijolos também em Parnamirim e um lar em Ceará-Mirim, na Grande Natal.
(Veja no vídeo acima depoimentos de integrantes do grupo e de internados nos lares)
O projeto
“O Saqueando o Inferno é a junção de outros projetos que já existiam. Já estávamos ajudando as pessoas nas ruas e sempre sentíamos falta de dar mais apoio para que elas deixassem as drogas, principalmente o crack. Foi quando decidimos montar esses lares”, explica o policial militar Artur Emiliano, um dos coordenadores do projeto.
Antes de ir aos quatro bairros, grupo faz oração na avenida Jaguarari (Foto: Fred Carvalho/G1)
A maior dificuldade é retirar as pessoas das ruas. Todas as segundas-feiras, o grupo – cerca de 30 pessoas – vai a quatro pontos onde há venda e consumo de drogas em Natal: Lagoa Nova, Cidade Alta, Ribeira e Paço da Pátria.
“Ninguém que vai para os nossos lares faz isso de forma obrigada. Nós temos que convencer cada um. Usamos uma isca para atrair as pessoas: distribuímos um sopão, pães e roupas. Enquanto elas comem, nós aproveitamos para falar um pouco sobre a palavra de Jesus Cristo e convidamos essas pessoas a darem a si mesmas uma chance. Se quiserem mudar de vida, levamos para os nossos lares”, diz o comerciante João Maria Peixoto, também coordenador do Saqueando o Inferno.
João Grandão, como era conhecido, é um ex-PM condenado por assassinatos e formação de quadrilha no Rio Grande do Norte, e que segundo o Ministério Público liderava um suposto grupo de extermínio que agia na Grande Natal. João ficou preso por 16 anos e hoje está no regime semi-aberto.
Perdi amizades, família. Fui morar nas ruas e cheguei ao ponto de comer lixo para sobreviver."
César Nogueira, 24 anos, interno
Embora o projeto seja liderado por evangélicos, não há envolvimento de igrejas.
“Não queremos que nenhuma igreja se sobressaia às outras aqui. Há irmãos de todas as congregações. O que queremos apenas é que a palavra de Jesus seja transmitida a esses necessitados”, diz Artur Emiliano.
Doações
Segundo os coordenadores, cada pessoa internada custa, em média, R$ 400 mensais. Na semana passada, cerca de 40 homens e 15 mulheres estavam nos lares e na fábrica de tijolos. "No começo, bancávamos tudo com nosso dinheiro. Hoje, temos alguns parceiros. A única coisa que não aceitamos é dinheiro", afirma João Peixoto.
Eliane Barbosa coordena lar para mulheres do
projeto (Foto: Fred Carvalho/G1)
Não há luxo nos lares e por muitas vezes a comida é pouca. “Há dois meses, teve um dia que abri a geladeira e vi que a única coisa que tinha lá eram alguns ovos, que daria apenas para o almoço. Não sabia como seria o dia seguinte, diz Eliane Barbosa, que coordena o lar para as mulheres.
Ela conta que naquela mesma tarde um comerciante procurou o projeto e doou 200 quilos de linguiças e salsichas. "Com certeza foi Jesus que enviou esse anjo”, afirma.
Ofícios
Nos locais destinados aos homens, o projeto tenta ensinar novos ofícios a eles. Há carpintaria, marcenaria e a fábrica de tijolos.
“Eu comecei nas drogas aos 14 anos, quando falsos amigos me apresentaram a maconha. Depois passei a cheirar cocaína. E há alguns anos me envolvi com o crack. Aí foi a minha destruição. Perdi amizades, família. Fui morar nas ruas e cheguei ao ponto de comer lixo para sobreviver. Com esse projeto, tenho esperança de que vou me restaurar”, diz César Nogueira, de 24 anos.
Fora das ruas
Quando saiu das ruas, Laura estava na comunidade dos Coqueiros, em Lagoa Nova. César passava os dias na Cidade Alta, ao lado da catedral de Natal. Ele está no lar desde janeiro passado. Os dois dizem estar confiantes na reabilitação.
Nas ruas, cada voluntário aborda um viciado e oferece ajuda (Foto: Fred Carvalho/G1)
Eles têm muitos exemplos para não desistir. Um deles é Robson França de Melo. “Há 18 anos, conheci o crack. Me afastei da família ao me iludir pelo mundo da droga. Fui rejeitado, perdi minha dignidade. Eu era fuzileiro naval e cheguei ao ponto de, para manter o vício, catar latinhas e papelão. Mas hoje me sinto recuperado. Fui resgatado do inferno e agora ajudo pessoas dando meu próprio testemunho”.
Mais da metade das pessoas que conseguimos tirar das ruas voltam para as drogas."
João Peixoto, coordenador
Mas não são todos que conseguem. “Não temos números, mas acho que mais da metade das pessoas que todas as segundas-feiras conseguimos tirar das ruas acabam voltando para as drogas", diz João Peixoto.
"Como nossos lares vivem com as portas abertas, não seguramos aqueles que queiram sair. Apenas lamentamos e mantemos a esperança de na semana seguinte poder ajudá-las novamente”, afirma o comerciante.
Na madrugada da terça-feira (12), cinco pessoas aceitaram ser retiradas das ruas e foram para os lares do projeto. Um deles conversou com a reportagem do G1 ainda de madrugada, quando foi abordado pelos voluntários do projeto na comunidade dos Coqueiros.
“Comecei nas drogas faz 5 anos. Não tenho trabalho fixo e sustento meu vício apenas pedindo esmola. Tudo o que ganho, gasto comprando pedras de crack. Agora quero me tratar e sair dessa vida”, disse. Esse homem, segundo os coordenadores, deixou o lar em Ceará-Mirim cerca de 12 horas após dar entrada. “Veio, dormiu, comeu e foi embora”, disseram.
Cracolândias
O grupo frequenta, todas as segundas-feiras, quatro pontos apontados por eles como sendo cracolândias em Natal: Lagoa Nova, Cidade Alta, Ribeira e Paço da Pátria.
O G1 acompanhou o trabalho do Saqueando o Inferno na madrugada da terça (12) no bairro de Lagoa Nova. O cruzamento das avenidas Jaguarari e Antônio Basílio é um dos trechos mais movimentados da cidade durante o dia. À noite, o movimento é outro: o do comércio e consumo de crack.
Sem serem importunados, traficantes vendem drogas livremente. O crack, considerada um das mais viciantes, é consumido nas calçadas. “Vivo disso e estou muito bem assim. Não preciso de ajuda. Preciso é de outra pedra”, diz um homem ao ser abordado por um voluntário do projeto.
Sopa e pães são distribuídos enquanto voluntários ofecerem ajuda espiritual (Foto: Fred Carvalho/G1)
As abordagens do Saqueando o Inferno são pacíficas e seguidas de palavras de incentivo. “Boa noite, irmão. Jesus te ama e eu não vou desistir de você. Se importa de orar um pouco comigo?”, indaga João Peixoto a um homem na escuridão de uma viela nos Coqueiros.
“Não são todos que aceitam essa oração, mas respeitamos a todos. Cremos que um dia essas pessoas serão tocadas e permitirão que nós as ajudemos”, diz Artur Emiliano. Toda segunda, cerca de 80 litros de sopa e 200 pães são distribuídos nas cracolândias. Peças de roupas também são doadas.
João Grandão
João Maria da Costa Peixoto é um ex-policial militar do Rio Grande do Norte condenado por assassinatos e formação de quadrilha. Ele foi preso em 2005 na Operação Fronteira, deflagrada pela Polícia Civil e pelo MP após um ano de investigações. Além dele, outros 13 policiais também foram indiciados. João foi expulso da Polícia Militar.
Condenado por homicídios, João Maria é um dos líderes do Saqueando o Inferno (Foto: Fred Carvalho/G1)
João diz que conheceu a palavra de Jesus Cristo em 2011, na penitenciária federal de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. “O João Grandão de antes, hoje virou o João de Deus. Sei do que fiz e do que foi atribuído a mim. Mas também sei que Jesus é quem comanda meus passos”, limitou-se a comentar. Ele diz que ainda não quer falar sobre o passado.
“Hoje, dedico minha vida à família e a esse projeto. Essa é a missão que Jesus Cristo me deu: ajudar as pessoas a mudar de vida, a deixar as drogas e buscar a verdadeira palavra. Pretendo, em um futuro próximo, abrir uma nova unidade terapêutica voltada para a área da segurança pública tendo em vista que já fiz parte desse setor. Eu me transformei e quero que outras pessoas façam o mesmo”, afirma João.
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